Margareth White

Simetria mutante: “As virgens suicidas”, de Jeffrey Eugenides

Fala-se muito sobre (I) a queda de qualidade do primeiro para o terceiro romance de Jeffrey Eugenides – As virgens suicidas (1993) e A trama do casamento (2011) – e (II) a transição feita pelo autor do primeiro para o segundo,  Middlesex (2002), que valeu a Eugenides dois prêmios muito importantes nos EUA, o National Book Award e o Pulitzer, em 2002.

As Virgens Suicidas é um livro muito bom. A prosa é concisa e a história desmonta o leitor a cada troca de vozes (são diversos narradores,  alguns críticos insinuam a que o autor quis simbolicamente tratá-los  de forma a compor um coro como o usual na tragédia grega). Sim, o livro fala de uma tragédia. Por cima, trata do desmantelamento do “sonho americano” – momento de criso do capitalismo, momento que também precede o arrocho neoliberal dos 80. No texto conciso e lírico sobram odes aos valores que, no fim da última década, vão ser cultuados em nostalgia não só pelos estadunidenses.

Em uma casa de cinco meninas, filhas do professor de matemática do colegial que toda a vizinhança frequenta e de uma católica (ver traços de Margareth White, a mãe louca da Carrie, personagens de Stephen King – talvez não seja só coincidência), a caçula se mata e desencadeia a a trama.

Após o suicídio de Cecília, as investidas da mãe contra a vida social das filhas culminam em depressão coletiva.  As meninas quase não saem do casulo. Em outra semelhança com Carrie, um baile de high school é definitivo para a trama. A partir desse momento chave, a desgraça vai ser consagrada em cada um dos personagens tocadas pelo olhar das Lisbon.

Quase vinte anos após o ocorrido, os colegas de rua, todo meninos, reconstroem o ocorrido a partir de objetos deixados pelas Lisbon numa lata de lixo, cartas e pequenos tesouros endereçados a eles, entrevistas com parentes, vizinhos e colegas de escola. É através desse tear da memória e de pequenos objetos que acompanharemos os fatos, realocados em vozes protegidas da ingenuidade adolescente, quase 20 anos após o ocorrido. O autor caleja seus narradores. Faz com que eles atravessem o niilismo oitentista – em destaque em A trama do casamento – para transformá-los nos autores em busca de uma narrativa.

A opção Eugenides é certeira: As virgens suicidas poderia ser um livro de sentimentos, mas é um livro de sensações. A descrição da tentativa de suicídio de Cecília, lembrada pelo garoto que a descobre é exemplar nesse sentido. A autopsia de uma das Lisbon, colhida de um dos médicos da equipe que a examinou após a morte é outro.

Cecília nua na banheira, um dos pulsos cortados agarra firmemente um escapulário da Virgem Maria. O que poderia sobrar dessa imagem em um homem que a viu  tomado de adrenalina por invadir um lugar secreto sem ser convidado, à espreita de descobertas mais doces – como as caixas de absorventes descobertas no armário do banheiro em outra ocasião> No romance, essas imagens são abertas e delicadamente descritas. Durante a autópsia, o médico busca algum mal no corpo – mas os pulmões ainda guardam a iluminação rosáceo-azulada do fraco neon, o fígado não guarda sinais de álcool, tudo parece perfeito demais sob a pela a pele branca e os olhos iluminados. Mas, como Cecília afirma ao psiquiatra, em análise após a primeira tentativa de suicídio, “Você nunca foi uma menina de 13 anos“. Dessa forma, como nós poderíamos – ou os narradores poderiam saber – porque tudo pode acontecer da forma como acontece.

O assassinato das árvores doentes da região e, em grande escala, o baile de debutantes de máscaras de gás são outro tipo de imagem-sensação no romance. Nelas, o tumor e a morte química, o mal além, o vírus letal, os tremores de fim de sonho, o choque pós-moderno, o fim da tradição, o esfacelamento da comunidade, a vida real atravessam o simbolismo para, de antemão, nos questionar: que tipo de questão eu buscarei responder aqui> Não existem respostas soltas – menos insinuação, por mais que os simbolismos pareçam indicar o contrário.

Em todo caso, a representação parece estar no cadafalso em As virgens suicidas. Dividido em cinco parágrafos, o romance subverte a ideia de imaginário cultural estadunidense – desloca a paisagem controlada pelo fanatismo religioso, o terror pela fresta da porta e a sangria da sexualidade virginal para um plano onde o quebra-cabeça de simetria mutante nos impede de concluir o jogo. Dessa forma, as imagens e só elas, temperadas pela catástrofe, a ardência juvenil e a nostalgia podem elevar o texto e fazer o leitor respirar por um momento, fora do limbo.

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As virgens suicidas também é lembrado pela adaptação dirigida por Sofia Coppola, de 1999. O filme iniciou a carreira de diretora e roteirista de Sofia e apresentou as fundições de seu cinema: ela divide com o pai o interesse pelo sonho americano e sua falência, os fluxos suburbanos e, de certa forma e as proximidades eventualmente provocadas pela distância. A assinatura da diretora se dá pelo ruído daquilo que não se vê em seus filmes… mesmo com os longos silêncios e imagens aparentemente vazias de sentido – ver as cenas musicais de Um lugar qualquer (2010).

A adaptação de As virgens suicidas é deliciosa. História de tarde chuvosa, apesar das alamedas e sacadas iluminadas, a diretora mostra seus recursos e intenções num filme de formação.  Sofia nega o alarde em seu cinema. A diretora é acusa, às vezes, de soar à música radiofônica pretensiosa, de assinatura autoral. Entretanto, seus filmes estão permeados por buscas, respiros de linguagem e de afeto.

A música nesse primeiro filme é imperdível. Se no livro Eugenides cita bastante hard rock, Carole King e os sucessos radiofônicos do final dos 70 (há no romance pelo menos uma passagem lindíssima de diálogo musicado, no telefone). Sofia transmite o humor de sua adaptação com a trilha original composta pelo Air – essencial na última parte, especialmente na sequência do baile.

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