Julho

Depois de junho: a política das caminhadas

O dia em que vimos um bom filme, fui ameaçado de morte por um homofóbico improvável e expulso do shopping por acreditar que devo manter os pés no chão em qualquer circunstância ou lugar.

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Que experiência foi o dia 22 de julho. Vi com amigos um filme que nos fez caminhar da Praia de Camburi ao Centro de Vitória. No final da meia volta pela cidade rolou aquele cansaço bom, de quem cumpriu uma missão para o coração. Depois de Maio nos motivou a colocar o papo em dia, tentar entender o que tem acontecido no Espírito Santo, no Rio de Janeiro [com ou sem Francisco] e no Brasil. Assim quem sabe poderíamos nos entender um pouco melhor.

Do Jardins, cruzamos a Ponte Ayrton Senna e o Triângulo até a Praça dos Namorados. A Carol empurrava sua bicicleta, Appel enrolava seus cigarros, eu caminhava com uma bota cano médio nova, o Fred compartilhava uma barra de chocolate ao leite. Àquela altura, eu já não conseguia segurar a dor de dois tornozelos em carne viva – os band-aid não deram conta.

Relaxamos, claro. Tirei a bota e continuamos a caminhada. Ríamos ou praguejávamos alto. Amigos enfim. Quase no Shopping Vitória, onde compramos filtros para cigarros, fomos abordados por um desses caras que estão sempre nas ruas da cidade, no campus Goiabeiras, com pulseiras de sementes, aranhas de arame, brincos de pena.

Ele me mandou falar como homem. Ele me mandou ser natural. Ele falou que se eu não falasse direito ele me mataria. Como se eu ou qualquer outro não pudesse ser o que quisesse – em reprodução ou produção de cultura. Como se ele mesmo não pudesse estar ali.

Além do susto, por não conhecer aquela pessoa, minha única reação foi questioná-lo, com os olhos fixos nos olhos dele: ” MAS VOCÊ?!”.

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Porque para mim e para todos que estavam ali comigo não fazia o menor sentido o comportamento homofóbico daquele indivíduo. Mas sabe como é… ainda misturo tudo. E idealiza. A gente esquece que as relações de poder vão se dar em todos os espaços. “O opressor não vai estar na sua tenda, no grupo da sua simpatia, na marcha.” Sonho né?

Enfim, entramos ainda meio atordoados no shopping. Eu de pé descalços, com a bota nas mãos.

Shopping Vitória: o mesmo estabelecimento que negou refúgio aos capixabas quando tentavam escapar das agressões da polícia no dia em que assistimos – na escadaria da Assembleia ou por um link ao vivo, os deputados engavetarem o projeto que pedia o fim do pedágio da Terceira Ponte em meio a bombas de efeito moral, balas de borracha, abordagens abusivas e tudo mais – como bem lembrou a Carol antes de terminarmos nossa caminhada.

Da portaria principal fomos à tabacaria, onde compramos os filtros e pedimos uma sacola grande para guardar o sapato. Tudo certo até aí.

Ao sair da loja fomos abordados por um segurança. Educadamente ele nos informou que eu não poderia ficar ali de pés descalços. Bem menos chocado que anteriormente, porque as conexões se fazem rápido numa situação como aquela, eu gritei com ele. Gritei como quem aprendeu a gritar com o subalterno negro que está ali sob o meu comando para fazer a capina – “Pode deixar que já estou indo! Estamos indo embora!”. Como se ele estivesse de fato afetado com os meus pés cabeludos plantados na pedra fria do shopping à beira mar.

Temos deixado as pessoas serem duras conosco. É difícil fugir desse controle. Não haverá fuga se não houver tentativa sincera. Essa tem sido uma das minhas verdade nos últimos dias.

Poderia supor vários motivos para a ação do segurança. A única verdade que posso extrair da ação do segurança é que na rua o homem de bem não anda descalça. A gente sabe quem anda sem sapatos na cidade. Esses cidadãos, claro, não podem entrar no shopping.

Por isso o acontecimento. Sem planejar, fizemos política. É a oportunidade que é preciso agarrar*.

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A praia é uma exceção que não tem contado muito para mim nos últimos tempos. A separação dos públicos por quiosques na Curva da Jurema nos sábados e domingos é bastante ofensiva e a gente convive com ela numa boa. A Curva vai sendo gentrificada a cada quiosque reformado. Aos poucos o shopping se confunde com praia. Com uma perspectiva dessa sob os nossos olhos, não dá para endurecer.

As meninas tiraram suas sapatilhas e tênis em solidariedade. Os funcionários da banca de óculos moderninhos olhavam assustados. O repórter da Rede Gazeta que cobre amenidades para a Revista AG passou por nós e parecia também não entender nada. O segurança que nos abordou, talvez alarmado, comunicou-se com os colegas.

Em menos de um minuto apareceu um segurança montado num daqueles carrinhos patéticos que transitam pelo shopping assegurando a ordem. Talvez ele tenha ficado assustado quando ameacei derrubá-lo se ele não saísse da minha frente, pois estávamos indo embora. Ele brincou conosco antes disso. Talvez tenha achado um pouco de graça na cena. Mas desse momento em diante ele nos escoltou, sob o olhar atento dos outros seguranças que surgiram enquanto caminhávamos para a portaria principal do shopping entre consumidores não menos curiosos.

Estávamos no mesmo shopping que negou refúgio aos manifestantes/consumidores que tentaram se abrigar da violência policial e do Estado na desocupação da ALES. A mesma Assembleia que se confunde com shopping center  todos os dias.  No mesmo Espírito Santo que perseguiu e prendeu aleatoriamente 44 militantes na última sexta-feira, dia 19 de julho. Entre os detidos, 11 deles são menores.

*Deleuze, Gilles. Controle e devir – entrevista de Gilles Deleuze a Toni Negri. In: Conversações. São Paulo, Ed 34, 1992.